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por Nelson Karam e Renata Belzunces
Economistas do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)
As associações não são definitivas, mas há várias evidências de que a pandemia da Covid 19 pode ter sido precipitada pelo desequilíbrio provocado pelo constante avanço da ação humana no meio ambiente. Como bem expressou Boaventura de Sousa Santos em Cruel pedagogia do vírus (Editora Almedina, 2020): não se trata de vingança da natureza. Trata-se de pura autodefesa. Qualquer alternativa que não envolva a maioria dos seres humanos, sobretudo aqueles que vivem do trabalho, será apenas mais um verniz para a superficialidade.
Por conta da pandemia, alguns países estão desenhando e aprofundando programas e políticas públicas para, no futuro próximo, reverem a base produtiva e debaterem os limites do crescimento econômico para a sustentabilidade do planeta. E, mesmo sem provas definitivas da relação entre o avanço da humanidade sobre o habitat de outras espécies e a Covid 19, as mudanças climáticas já comprovam a urgente necessidade de alteração do modelo econômico adotado até aqui.
Os novos programas de salvamento das economias no Norte e no Sul tem um desafio maior que os planos antecessores, não podem mais fugir da questão ambiental. Há muita clareza em países como a Alemanha, por exemplo, de que sem combinar as necessidades mais prementes com mudanças estruturais, o próprio jogo geopolítico entre as potências mundiais será afetado. A China, atual maior emissor de gases de efeito estufa, fala em descarbonização nos próximos 20 anos e se move, a passos lentos, mas com números "chineses", fazendo investimentos em energia renovável.
Os programas que não fogem do desafio global são os intitulados New Green Deal. As propostas nos EUA vêm sendo discutidas desde 2006 e o parlamento europeu também aprecia esta perspectiva. Se por um lado a situação da economia mundial impactada pela Covid 19 paralisou e ainda paralisa investimentos e propostas futuras, por outro, promove uma janela de oportunidades para fortalecer o direcionamento dos novos investimentos e da construção de acordos na perspectiva da sustentabilidade, compreendida nas dimensões ambientais, sociais e econômicas. Uma resposta à crise só pode ser considerada "verde" se dialogar com a diminuição da desigualdade social e repensar o atual padrão de consumo insustentável dos países ricos. Para tantos novos investimentos que devem ser direcionados sobretudo para a infraestrutura (energia, saneamento básico, transporte público de massa, agricultura orgânica, restauração de ecossistemas, saúde pública, entre outros), também há o desafio de tornar tecnologias e recursos acessíveis aos países mais pobres.
A sustentabilidade depende do que virá pela frente e também de como lidaremos com a herança de um século e meio de industrialização, dominado pela ideia da infinitude dos recursos naturais. Nesse quadro, teremos inevitavelmente que lidar com a matriz energética ainda muito dependente dos combustíveis fósseis (petróleo e carvão), que tem grande importância para as principais economias do mundo, entre elas a do Brasil. Essa fonte energética, que lança elevadas quantidades de carbono na atmosfera, impulsiona uma série de atividades produtivas que também emitem gases nocivos ao planeta e consomem recursos naturais em escala muito maior do que poupam, apesar dos crescentes avanços tecnológicos.
Para a viabilização de uma economia de baixo carbono, ou seja, que diminua ou elimine a emissão de gases de efeito estufa, é necessário que se conceba algo muito diferente do que se conhece hoje: um mundo em que os melhores empregos não sejam mais gerados por indústrias de petróleo e que regiões prósperas não sejam mais criadas a partir de montadoras de automóveis movidos a combustão. Para criar o novo, é preciso modificar e deixar para trás o que já não serve mais e, nesse processo, propiciar condições adequadas a trabalhadores, comunidades e regiões dependentes de setores que serão objeto de transformação e/ou extinção.
O conceito de transição justa pressupõe que as alterações necessárias sejam implantadas visando à melhoria do ambiente, dos trabalhadores e das comunidades afetadas. Não há um conceito rígido ou regras predeterminadas sobre o funcionamento do processo de transição justa, o que possibilita várias alternativas e arranjos entre governo, empresários, comunidade e trabalhadores. Do ponto de vista dos trabalhadores, a transição justa envolve sempre a garantia de empregos de qualidade mediante recondução para outras atividades.
A geração de empregos no Brasil era uma necessidade antes mesmo da pandemia. A anemia da economia brasileira, com elevada taxa de desemprego e alta informalidade, agora se defronta com o desafio de enfrentamento dos impactos da Covid 19. O DIEESE prevê um cenário em que o número de desempregados pode aumentar de 13 para 17 milhões de desempregados devido aos efeitos da pandemia. As perspectivas para o futuro do trabalho ainda convivem com o crescente processo de digitalização da economia e das perdas de produtividade decorrentes dos efeitos do aquecimento global. A flexibilização da legislação trabalhista em curso somente aprofundará este dramático quadro, sem oferecer perspectiva alguma de fortalecimento do mercado de trabalho.
Uma grande oportunidade está aberta para que políticas públicas de fomento à geração de emprego e renda, fundamentais para reativação econômica em meio à pandemia, estejam assentadas na criação de postos de trabalho sustentáveis, em setores de atividade com baixa emissão de carbono.
A geração de empregos sustentáveis, isto é, postos de trabalho em setores com nenhum ou baixo impacto na emissão de carbono pode ser uma boa escolha para fortalecer o mercado de trabalho e impulsionar uma economia menos agressiva ao meio ambiente. Entretanto, será preciso atender às demandas do planeta e da sociedade, com redução de desigualdades sociais. Não basta gerar “qualquer” emprego, tem que ser emprego de qualidade, com garantia de direitos, boa remuneração, proteção social e cobertura de acordos coletivos via negociação sindical. Deve-se também garantir aos trabalhadores, em setores impactados pela redução de atividades, o acesso a cursos de requalificação profissional e/ou acesso a programas sociais que garantam uma renda básica de cidadania.
O setor de energia renovável pode ser uma dessas frentes (ainda que também produza impacto ao meio ambiente). Há 11 milhões de empregos em energia renovável no mundo, segundo estudos da Irena - International Renewable Energy Agency. No Brasil, hoje, o setor de energia renovável emprega aproximadamente 1,1 milhão (10% dos empregos mundiais), a maior parte, 74%, a partir da biomassa; 18%, da hidroeletricidade; e 8%, eólica e solar.
Sem incluir pessoas no plano, não tem como dar certo. A Rio-92, até hoje a maior conferência da ONU sobre o meio ambiente, lançou a Agenda 21, reconhecendo o papel dos trabalhadores e suas representações para a efetivação do desenvolvimento sustentável. O capítulo 29 foi dedicado ao Fortalecimento do Papel dos Trabalhadores e de seus sindicatos. A inspiração em reconhecer os que vivem do trabalho vinha da ideia de que “Os esforços para implementar o desenvolvimento sustentável envolverão ajustes e oportunidades aos níveis nacional e empresarial e os trabalhadores estarão entre os principais interessados. Os sindicatos, enquanto representantes dos trabalhadores, são atores vitais para facilitar a obtenção de um desenvolvimento sustentável, tendo em vista sua experiência em responder às mudanças industriais, a altíssima prioridade que dão à proteção do ambiente de trabalho e ao meio ambiente conexo e sua promoção do desenvolvimento econômico e socialmente responsável. A rede de colaboração existente entre os sindicatos e seu grande número de filiados oferece canais importantes de suporte para os conceitos e práticas do desenvolvimento sustentável”. (ONU, Agenda 21).
Para assegurar que investimentos sustentáveis gerem empregos sustentáveis, é fundamental a valorização dos espaços de negociação e diálogo social, como ocorreu no passado com as negociações tripartites nas câmaras setoriais; correção das contas do FGTS, ações para erradicação do trabalho escravo e infantil, na formulação da política para correção do salário mínimo, entre outros. Há poucos avanços sobre o tema ambiental nas negociações coletivas de trabalho no Brasil e em acordos nacionais. As cláusulas negociadas entre empregados e empregadores voltam-se ao ambiente interno de trabalho, tentando garantir medidas de segurança e saúde para o exercício das atividades laborais, com poucos avanços sobre o ambiente externo. É urgente aprofundar o debate sobre a jornada de trabalho, o direito à informação, os impactos ambientais dos investimentos, a representação sindical nos locais de trabalho, as formas de contratação do trabalho, programas de garantia de renda básica de cidadania, entre outros pontos da agenda social, econômica e ambiental.
O meio ambiente deve ser concebido em um contexto único e sistêmico da relação homem-natureza, uma vez que as ações humanas provocam reações no meio. É preciso rever os paradigmas do que se entende por desenvolvimento econômico sustentável, já que nem mesmo os avanços tecnológicos têm sido capazes de redimir o planeta dos impactos ambientais. A geração de empregos realmente sustentáveis pode ser uma boa e oportuna escolha para a compreensão do ambiente como um todo e essa bandeira só pode ser coerentemente conduzida pelos sindicatos de trabalhadores.