Tom de mudança climática no vinho francês

26/09/2016 às 12:52
por Redação

Atualizado 26/09/2016 às 12:54

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Condições de tempo instáveis podem resultar em mudanças na própria natureza da produção vinícola da França

Em setembro, em pleno outono europeu, o sol castiga o vinhedo Domaine Maestracci, onde alguns poucos trabalhadores sazonais da Romênia e do Marrocos acompanha um trator que realiza a colheita mecânica das uvas.

 

 

As montanhas ao redor são permeadas por vilarejos pitorescos, que oferecem uma visão de como essa região da Córsega era há um século. Entretanto, novos tempos chegam à ilha no Mediterrâneo e à região continental da França.

 

Uma combinação de tempestades de primavera, ondas de frio e de calor e tempo seco deverão reduzir a colheita de 2016 em mais de 10%. Especialistas dizem que as condições de tempo instáveis, provavelmente em razão das mudanças climáticas, são um indicador do que poderá ser o futuro: vinhedos terão que mudar as práticas de cultivo e da fabricação do vinho. Essas mudanças prometem transformar a própria identidade dos famosos vinhedos franceses.

 

Colheitas antecipadas

O Clima mais seco e quente dos últimos anos fez com que o vinhedo Domaine Maestracci antecipasse a colheita para o início de setembro – semanas antes do período habitual de algumas décadas atrás.

"Normalmente, tínhamos uma lacuna entre a primeira e a última colheita – mas agora todos os vinhedos corsos colhem ao mesmo tempo", diz a vinicultora Camille-Anais Raoust. "Acho que o vinho não será equilibrado o bastante."

 

A Córsega não é a única região afetada pelas mudanças do clima. Tempestades e geadas de primavera castigaram os vinhedos em Champagne e Borgonha, enquanto a seca encolhe as uvas – e a produção – em Bordeaux e na região sulina de Languedoc.

 

Espera-se que as instabilidades no clima se intensifiquem no futuro, mesmo que o tempo mais quente e seco tenha produzido excelentes safras nos últimos anos. "Sabemos que há soluções para todos os vinhedos na França em caso de um aumento de temperatura menor que 2º C", diz Jean-Marc Touzard, diretor de inovação do Instituto Nacional para a Pesquisa Agrícola (Inra). Ele diz que, até o momento, as mudanças climáticas foram benéficas aos vinhedos, aumentando a frequência de boas safras. "Mas, se tivermos aumentos de temperatura de 3 ou 4 graus, algumas regiões terão grandes dificuldades para produzir certos vinhos", alerta.

 

Sabor diferente

As mudanças no clima não devem afetar apenas a produção, mas também o gosto do vinho. Há alguns meses, pesquisadores formaram um painel em Bordeaux com aquilo que os cientistas acreditam que poderá ser o sabor do futuro, pós-aquecimento global: vinhos mais encorpados, fortes e com maior teor alcoólico.

 

"À primeira degustação, os consumidores reagiram positivamente, dizendo que o vinho sob o impacto das mudanças climáticas era estranho, mas bom", diz Touzard. "Mas, quando repetimos os testes, disseram que preferiam o vinho atual. Conclusão: é melhor manter o perfil atual do vinho."

 

Assim como em outras regiões da França, os produtores de vinho da Córsega já buscam soluções. No vilarejo de Felicetu, o vinicultor Bernard Renucci testa uvas nativas que os produtores locais deixaram há muito tempo de utilizar. As variedades estão sendo reavivadas pelo Instituto de Pesquisas do Vinho da Córsega (CRVI), que realiza, em parte, um retorno às raízes da vinicultura da ilha, mas também tenta encontrar uvas resistentes às futuras transformações no clima. "Alguns não têm interesse quando se trata de vinicultura, mas nós prosseguimos com os que se interessam", afirma Renucci, que cultiva vários hectares da uva bianco gentile, nativa da região, que produz um rico vinho branco.

 

"Não esperamos uma catástrofe"

Nas salas cavernosas da adega de Renucci, o vinho recentemente colhido fermenta em grandes tanques de metal, liberando um odor inebriante. Cheiros fortes já preenchiam o edifício há um século, quando o local abrigava os rebanhos da família.

 

Assim como a vinicultora Raoust, Renucci cresceu numa família de produtores de vinho cujas raízes se estendem até os anos 1870. Ele também se lembra de quando as colheitas eram feitas semanas antes das datas atuais. "Se tivermos condições climáticas extremas, então talvez devamos nos preocupar – mas, por enquanto, não acho que haja problemas", observa.

 

Jean-Jacques Jarjanette, líder do sindicato dos vinicultores independentes – com mais de 7 mil membros – também expressa confiança na capacidade da indústria de se adaptar. "Não esperamos uma catástrofe", diz. "Obviamente, haverá alguns vinhedos que estarão mais vulneráveis do que outros, mas, de modo geral, não há grandes preocupações."

 

Ele também não se preocupa quanto a mudanças no gosto do produto. "O vinho que tomamos hoje não tem nada a ver com o de 40 anos atrás", diz Jarjanette. "E não será nada parecido ao de daqui a 40 anos."

 

Alternativas

Mesmo assim, as mudanças no clima vão depender de uma reformulação das antigas tradições e práticas que guiam a indústria francesa do vinho, diz Touzard, seja nos vinhedos que precisam de menos água, nas mudanças de locais de cultivo ou na troca das variedades de uvas. Isso significaria mudar as regras da Appellation d'Origins Contrôlée (denominação de origem controlada) da França, certificado criado para preservar a identidade dos melhores vinhos do país. "Teremos de mudar essas regras se quisermos nos adaptar", diz Touzard.

 

Isso poderia alterar a própria identidade de vinhos icônicos como o Bordeaux, atualmente produzido de uma estreita lista de uvas permitidas. "Toulouse e Bordeaux terão um clima mais mediterrâneo, então talvez comecem a cultivar variedades hoje plantadas em Espanha, Portugal e Itália", observa o especialista do Inra.

A região de grande produção vinícola Languedoc-Roussillon, que soma mais de um terço do total da produção francesa, poderá ter de enfrentar um dilema maior. "Sem a irrigação, será talvez mais difícil que muitos lugares produzam vinho", diz Touzard.

 

Na Córsega, alguns vinicultores se preocupam com a escassez de água. Raoust já se prepara para um futuro mais seco. Ela adota a viticultura biodinâmica, uma forma orgânica de produzir vinho, que leva em conta os ciclos lunares e utiliza pouca irrigação. "Quando irrigadas, as videiras são mais sensíveis ao ressecamento", explicou. "Prefiro deixá-las sofrer. Elas vão se aprofundar e procurar água." Ela não consegue imaginar o dia em que a Córsega não produza mais vinho. "Existem vinhedos na Argélia, e lá é bem mais seco", diz. "Talvez mudemos nossos procedimentos e nossas vinhas. Mas acho que ficaremos bem."